Nesta sessão "Comentando um conto" falarei de três contos do autor Carlos Patrício, presentes no Delirium
Doutor Sádico
Para ler alguns contos é preciso ter certa coragem e audácia. Medo e excesso de pudor podem afastar o leitor de contos mais tensos, e nem por isso menos valorosos. No conto "Doutor Sádico" o autor consegue lidar com dois tempos distintos, passado e presente, intercalando-os de uma maneira inteligente e envolvente. Seu livro não poderia ter outro nome que não "Delirium. Os personagens do conto se diferem profundamente em ideais. O vilão representa o que há de pior na humanidade, a capacidade de desprezar a vida do outro e manipulá-la a seu bel prazer, ignorando quais sejam os absurdos envolvidos nesse entendo. O outro personagem, a vítima, tem de lutar em meio à dor física e confusão mental, preso num antro de puro horror e cheiro de morte.
Li com o coração acelerado, a garganta ruidosa e minha esperança em questionamento. Não sabia o que esperar do horror que afligia a vitima. Seu algoz, um psicopata intelectual versado nas literaturas mais perversas que a humanidade produziu, cita de desde o Conde de Lautréamont até Hitler, enquanto fere a corpo e confunde a mente do seu brinquedo de prazer insano. Travam uma batalha, onde astúcia e lábia são poderosas armas, que devem superar mesmo o perigo das laminas.
Esse vilão certamente figura entre os personagens mais dementes que já conheci. Dentre as atrocidades de seus assassinatos e torturas infinitamente cruéis ele ousa ferir mesmo crianças. É um personagem que nasceu para ser odiado e que nunca poderá se redimir. Pedófilo, estuprador, assassino, necrófilo. Justamente por ser tão terrível o vilão é que eu dou pontos a mais para esse conto, nós leitores, precisamos encontrar personagens assim, mesmo sendo amantes da fantasia não nos esqueçamos que a linha que separa o real do imaginário é tênue e que os fantasmas de nossos pesadelos estão no mundo real. Temos de reconhecer a humanidade em nós e como os seres são falhos. Não, não quero lançar uma veia de pessimismo e medo, é apenas um ponto para refletirmos, para vermos até que ponto podemos ir pelo que acreditamos ser o melhor para nós, o egocentrismo é uma semente de perversão nos seres.
A estória finda de maneira surpreendente, o que não revelarei, mas deixarei que o leitor curioso imagine, ou mesmo busque o conto e descubra também seu caminho nesse conto de luz e trevas.
Indo além da estória por estória, o livro ainda nos traz citações de grandes autores, alguns cruéis devo lembrar e outros considerados os mais geniais de seus tempos. Muitas curiosidades são apresentadas e muitos questionamentos sobre nos mesmos são lançados. A figura do Doutor Sádico me faz lembrar o pensamento poético de que uma ideia pode resistir ao tempo, e mesmo a morte, para quem sabe um dia crescer e atingir seu propósito. Lembra-me também dos meus próprios questionamentos sobre a fé, em especial no que se relaciona com a afirmativa "a fé move montanhas". Vejo a fé não no sentido puramente religioso, mas na ideia de "acreditar em algo". Grandes vilões e heróis da historia, e também das estórias, só se tornaram personagens inesquecíveis por lutarem com toda força pelo que acreditavam, alguns a qualquer custo. Pensando o bem e o mal como algo relativo, me é difícil ainda deduzir o que é herói e vilão. Eu mesmo tenho um ideal de moral que não condiz com a grande massa, valorizo a bondade e a caridade acima de qualquer religião ou ideal político.
Ah, deixo um aviso, além das grandes atrocidades presentes no conto, temos ainda uma discussão um tanto acida e quase lúcida, sobre o valor da religião. Assim só recomendo que leia o conto que estiver disposto a discutir consigo mesmo tal tema. Questionar-se é preciso (e precioso).
Truco!
O que é a morte? O que será de nós quando o corpo for dado aos vermes? Simples cadáveres ou almas evoluídas plainando num infinito de paz e luz, ou ainda sombras imersas no fogo infernal? Quem é que pode saber...
O conto "Truco!" traz uma estória curiosa, um final que embora eu já suspeitasse não foi menos prazeroso. Os acontecimentos se desenvolvem a partir de uma mesa de amigos jogando truco que são subitamente surpreendidos por um assaltante. O desenrolar da estória traz a morte para a cena e nos deixa um questionamento na fala do narrador-personagem "Quando a ficha caiu, meu sono se deparou com as barreiras da reflexão [...] Não viver... é assombroso meditar sobre a ideia".
Eu devo admitir, refletir sobre a morte não me agrada nem um pouco. O simples pensamento de parar de produzir historia e estórias perturba-me. Afinal, o que nos aguarda? Se o paraíso, que paraíso seria, o dos cristãos, muçulmanos, hindus? E se for apenas o NADA? Detesto essa possibilidade, mesmo que se estando no nada não poderemos sofrer por essa condição, ainda detesto a ideia de tornar-me sem existência, sem memória e logo absolutamente improdutivo. E vocês, amigos leitores, como enxergam a morte?
Pouco antes da Virada
O conto "Pouco antes da virada" traz em suas duas paginas reflexões que tornam a nos fazer questionar sobre nós, sobre a morte e o egoísmo. Vemos um sujeito declarar em versos poéticos seus desejos de vida e morte. Afirma os fatos cruéis que a vida lhe ordenou e pergunta-nos se é mesmo ou não egoísmo desejar que com sua morte o mundo todo se exploda. Não sei, talvez seja. Afinal quando morremos bem pode ser que nosso mundo, nosso ego, se exploda e nada mais nos reste, nem mesmo flutuar no vazio.
Informações sobre o Livro :
Titulo: Delirium
Autor: Carlos Patricio
Ilustrador: Cassio Gois
Edição: I
Editora: Página 42 Editora
Ano: 2014
Comentando um conto : Doutor sádico/ Truco!/Pouco antes da Virada (Carlos Patrício )
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Oleh
Professor Augusto Junior
2 comentários
Escrever comentáriosPassando pra desejar uma ótima semana, bjs.
ResponderMuito obrigado, Viih. Paz, luz e inspiração pra nós sempre :*
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